Quem pensa que um comissário de voo é apenas um funcionário que tem como obrigação servir e acomodar passageiros está muito enganado. Para trabalhar dentro do avião, eles precisam saber como sobreviver na selva, como fazer armadilhas e fogo, como combater um incêndio e conhecer as técnicas de resgate no mar. Por isso, o curso de comissário de bordo inclui um treinamento prático de sobrevivência.
O G1 acompanhou a parte prática do curso de formação de comissários de voo do Centro Educacional de Aviação do Brasil (Ceab), no sábado (15), em uma chácara na cidade de Juquitiba, no interior de São Paulo. Esta etapa é a mais radical de todo o treinamento, em que os alunos aprendem a fazer armadilhas para pegar animais, a combater o fogo, descobrem como blusas podem servir para montar uma maca e passam cerca de 15 horas sem comer, somente com água, açúcar e sal. Tudo isso serve para simular o que os comissários vão enfrentar e como eles devem agir caso o avião caia na selva ou no mar.
Na teoria também estão incluídas disciplinas como postura e etiqueta, maquiagem para as aeromoças e comissárias, conhecimentos gerais de aeronaves e serviço. O certificado do curso é uma exigência para fazer o exame da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). "O conhecimento prático é muito importante caso aconteça um acidente. Dentro do avião todos trabalham em equipe e eles precisam vivenciar isso”, afirma Salmeron Cardoso, diretor do Ceab.
Os cursos custam entre R$ 1.450 (online), R$ 2.178 (regular) e R$ 2.600 (intensivo em três meses e meio). Para participar, os candidatos devem ter entre 18 e 29 anos, nível médio completo e altura mínima de 1,58 metro para mulheres e 1,65 metro para homens.
Na prática
O treinamento começa às 4h30, na sede da escola, para a organização dos 186 alunos. Para chegar até essa etapa, os futuros comissários já passaram por aulas teóricas presenciais ou online.
Na mochila, os alunos só podem ter os equipamentos necessários para as atividades. Água, sal e açúcar compõem a “refeição do dia”. Todos os alunos são identificados por números, que são escritos em esparadrapos e fixados nos bonés. O acessório não pode ser retirado em nenhum momento, nem mesmo dentro da piscina. E, banheiro, só na mata.
Os monitores anotam as “faltas” dos alunos como pequenos cochilos, desatenção, comida escondida, entre outros. Tudo o que é anotado conta ponto, que são retirados da nota final que os eles obtêm neste módulo.
Sobrevivência na selva
Na primeira aula do dia, os alunos aprendem a distinguir animais peçonhentos de não peçonhentos, cobras venenosas (de cabeça triangular) e não venenosas, a fazer armadilhas para caçar tatu, pássaros e animais de pequeno porte como coelhos e gambás. Eles também observam como a bússola deve ser utilizada para o deslocamento na selva.
Na aula de primeiros-socorros é apresentada a técnica de respiração boca a boca, a manobra de desengasgamento e de imobilização. Para o transporte, macas são montadas com paus e blusas de frio e os alunos descobrem que até mesmo uma corda pode servir para carregar acidentados.
O treinamento continua com as instruções sobre como fazer fogo. Pedaços de madeira, folhas, algodão de roupas, pilhas, baterias, palha de aço são alguns dos materiais que podem ser utilizados para fazer uma fogueira. “Aqui, ensinamos o que vai dar certo na hora para eles não ficarem patinando, sem saber o que fazer”, diz o instrutor Everaldo do Nascimento.
Galinha é salva na hora 'H'
Uma das etapas do treinamento consiste em matar duas galinhas para servir de alimento aos grupos após a etapa na selva. Um comissário de bordo vai precisar matar animais caso o avião faça um pouso forçado na floresta e tripulantes e passageiros precisem buscar alimento.
No treino acompanhado pelo G1, no entanto, uma boa parte dos alunos se apegou às duas galinhas presentes. Elas foram mimadas durante o treinamento e até ganharam nomes: Isabel Cristina e Sofia.
Na hora do abate, teve gente que reclamou. “Dá muita dó, porque ela ficou quieta, boazinha durante todo o percurso”, afirmou Jacqueline Andrade, de 28 anos, uma das responsáveis pelo animal. Teve gente até que chorou enquanto esperava pelo sacrifício das galinhas.
Mas, no final, nada aconteceu. Com o cronograma apertado, as galinhas foram soltas. A liberdade dos animais foi comemorada com palmas e gritos.
Combate ao fogo
Com extintores na mão, os alunos têm que combater labaredas de fogo, que podem chegar a quatro metros de altura, e aprendem a manusear o equipamento. Já no exercício dentro da casa de fumaça, eles precisam responder a algumas perguntas para sair do ambiente fechado, escuro e infestado de fumaça de madeira de eucalipto.
Segundo Almeron Cardoso, essa etapa mostra a importância do trabalho em equipe. “Temos que despertar esse espírito. E ele também precisam aprender a respeitar o medo e a entender os riscos de suas ações”, ressalta.
Na aula, eles também identificam diversos equipamentos que são utilizados nas aeronaves e recebem instruções sobre como utilizar o bote, a escorregadeira e o sinalizador.
Treino na piscina
A etapa mais gelada do curso conta com uma piscina com uma temperatura que varia de 3°C a 7°C. Quem não sabe nadar não tem desculpa e também precisa cair na água. “Aqui, eles têm que saber manter a calma, quem não sabe nadar aprende a controlar o medo para fazer as atividades”, fala o instrutor Renato Cardoso.
Os alunos atravessam a piscina com cabos, exercício para transportar pessoas que não sabem nadar, utilizam o colete salva-vidas e improvisam um equipamento de flutuação com uma calça jeans.
Da Alemanha para o Brasil
Com o português na ponta da língua, a alemã Yvete Kovacs Aroli, de 28 anos, não estava deslocada no meio de tantos brasileiros. Ela mora no país há um ano e mudou sua vida por causa do marido. Ele é professor de educação física e eles se conheceram enquanto trabalhavam em um cruzeiro, ficaram amigos e namoraram à distância por três anos até decidirem se casar.
“Foi tudo rápido e em três meses eu vim para São Paulo. Resolvi tentar essa nova vida porque achei que teria mais facilidade para começar uma nova carreira do que ele”, conta. O idioma também pesou na decisão, com facilidade para aprender, além do alemão, ela fala inglês e espanhol. Já o aprendizado do português veio com um livro e um CD, em apenas três meses.
Yvete já trabalhava como comissária de voo na Alemanha há cinco anos. “No começo eu fiquei em dúvida se conseguiria entender, mas gosto bastante de estudar, de saber coisas novas. Estudo com o dicionário do lado para tirar dúvidas.”
Agora, sua meta é ser aprovada na prova da Anac e voar para outros países. “Quero trabalhar em voos internacionais. Apesar de ter trabalhado na segunda maior companhia da Alemanha fazia voos curtos”, diz.
Comissário desde criança
Enquanto muitas pessoas não sabem o que vão ser quando crescer, Luiz Gustavo Falavinha, de 19 anos, já sabia qual seria sua profissão. “Sempre sonhei em ser comissário”, afirma.
Com 17 anos, ele deixou o técnico em logística para fazer o curso de comissário de voo. Em dezembro de 2010, um mês após fazer a prova da Anac foi contratado por uma companhia aérea e não parou mais de trabalhar.
Ele também fez o curso e como monitor acompanha os candidatos e relembra sua experiência. “Para mim, uma das partes mais complicadas foi a trilha, voltei para casa todo roxo, mas todos se ajudam. Hoje, como monitor cuido deles. É uma responsabilidade imensa.”
Para o futuro, seu plano é conseguir um emprego em uma companhia dos Emirados Árabes para conhecer o mundo enquanto trabalha.
Mudança de carreira
Estudando administração de empresas e já trabalhando na área, Jacqueline Andrade, de 28 anos, pretende mudar os rumos de sua carreira. “Desde criança, quando via um avião queria estar lá, sabia que um dia estaria lá”, lembra.
Ela foi a guardiã de uma das galinhas, batizada de Isabel Cristina, que foi levada para o treinamento e comemorou quando ela não foi morta. “Ainda bem que nada aconteceu. Ia ficar muito triste”.
Para a aluna, o treinamento foi mais difícil do que o esperado, mas ela lembra que ainda terá outros desafios pela frente. “Isso não é o final, ainda temos que passar no exame da Anac e conseguir um emprego. Sabemos que muitas pessoas que estão aqui não vão trabalhar na área”, diz.
Jacqueline não vai deixar a administração agora, seu objetivo é conseguir um emprego, aproveitando as novas oportunidades que vão surgir com a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.
Carreira como piloto
O massoterapeuta Guilherme Komatsu, de 21 anos, pretende deixar sua atual profissão para se tornar piloto de avião. Mas, antes de pilotar ele quer adquirir experiência como comissário de bordo para conhecer a atual situação e as oportunidades disponíveis no mercado.
Com três testes vocacionais que apontaram que sua área seria o turismo e influenciado pela tia que é comissária, ele se inscreveu no curso. “Estou um pouco cansado da área [massoterapia] e também preciso de um futuro, uma coisa que me leve mais para frente. Tenho o projeto de ser piloto, mas quero conhecer o dia a dia primeiro, por isso vou ser comissário”, conta.
Ele não sentiu muita dificuldade no treinamento prático e acredita que a etapa é importante para que eles realmente saibam o que fazer quando enfrentarem uma situação de emergência. “Sempre estou preparado. Não podemos ter medo de errar e somente achar que sabemos o que temos que fazer.”
Quem quiser se tornar comissário de voo pode consultar as escolas homologadas que oferecem os cursos de formação e o manual do curso de comissário no site da Anac.